Tolstoi, Beethoven, Rose e ... Kreutzer
Um curto romance ou uma novela, como lhe queiramos chamar. Escrita simples, cuidada, meticulosamente pensada. É assim A sonata de Kreutzer de Tolstoi.
Um diálogo que é mais um monólogo. Um cenário improvável, uma viagem de comboio. Numa carruagem onde os viajantes se acumulam, entram, ficam, partem. Ouvem mas não participam. Estão mas não estão presentes. Apenas o narrador permanece mas transformado em ouvinte. Não concorda nem discorda, vai lançando achas para uma conversa, a longos intervalos. As conversas iniciadas no principio da viagem foram rápida e progressivamente substituídas pelo monólogo prolífico do interveniente principal, Pozdnichev.
Um tema estranho, com um pensamento invulgar. Um contexto peculiar. Mateus 5:13. “... todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela no seu coração.”
O homem devasso e a mulher prostituta. O casamento. A relação entre o homem e a mulher. O conhecimento, o namoro, o casamento, o divórcio. Os filhos. Os outros. O ciúme. As discussões e os arrependimentos. A submissão da mulher. A irracionalidade. Os temas que se vão mantendo sempre actuais.
A associação musical deste livro não poderia deixar de ser a Sonata para violino e piano nº9 em lá maior “Kreutzer"de Beethoven. Esta associação é muito curiosa. A sonata foi inicialmente dedicada e presenteada a George Bridgetower, um violinista polaco que visitou a Viena e privou com o compositor. Por uma discussão relativamente a uma mulher, Beethoven decide então entregar a sonata a Rodolphe Kreutzer, um velho amigo violinista francês. Talvez fosse este episódio que levou Tolstoi a considerar que a sonata tocada no seu livro pela mulher de Pozdnichev e pelo violinista fosse precisamente a sonata Kreutzer. Com o ciúme a embalar ambas as situações. O amante e a sua amada.
Mas esta sonata é também, em si, bizarra. É reconhecida a falta de equilíbrio e simetria entre os movimentos da peça. O virtuosismo é distribuído pelos dois instrumentos, a energia repartida ao longo dos três andamentos. O primeiro, Presto, em forma de sonata, é precedido por uma lenta introdução em Adagio Sostenuto. O segundo andamento, Andante com Variazionié um tema com variações e o último movimento, Presto, desenvolve-se em formato de sonata. Estes diferentes andamentos foram ligados usando os mesmos motivos e materiais ao longo de toda a peça criando um todo unificado.
Immortal Beloved é um filme biográfico. A vida e os amores de Beethoven. Após a sua morte e para cumprir uma vontade sua deixada em testamento, o seu amigo, confidente e secretário, procura a amada secreta de Beethoven, descrita apenas como Immortal Beloved. O filme suportado pelos constantes flashbacks vai enfatizando ficcionalmente muitos dos momentos mais emblemáticos e paradigmáticos da vida do compositor, e uma tentativa de busca interpretativa do seu estado mental. Foi realizado por Bernard Rose, tendo Gary Oldman assumido o papel do compositor.
Magnífico. A descrição da sonata por Beethoven, enquanto tocada por Bridgetower, é soberba. Não a ouvindo, sente-a e faz-nos sentir à sua maneira. O amor e o desespero. Não o traduzo para texto. Aconselho o filme.
Vale a pena o tempo dedicado a esta tríade de deslumbramento artístico, que deve ser apreciada à exaustão e conjugada nos seus diferentes aspectos.
Valeu-me a pena este mês dedicado ao livro, que era o elo que me faltava do conjunto. Pena que o tempo não abunde, que o trabalho se sobreponha e que os livros, a música e o cinema tenham que estar sempre em plano menos primordial.