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Lata de Conversas

Lata de Conversas

14
Nov20

Shostakovich e a Covid-19

Paulo L

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PL

 

 

Chove!

São lágrimas, Senhor!

Lágrimas deste planeta que sofre, deste planeta já sofrido por inúmeras agressões.

Mas agora o choro é mais forte. A humanidade sofre castrada da sua essência. Mutilada daquilo que lhe é importante, do estar, do conviver. A ausência do toque. O toque é uma das necessidades básicas. Não existimos sem toque, sem troca, sem sentir o calor na nossa pele. O abraço. É tão bom o abraço! Como sinto a sua falta, como sofro por não poder abraçar, como sofro por não ser abraçado. O afecto surge de formas diferentes, de formas impessoais. Gestos, mensagens, trocas de olhares. E o abraço, Senhor? Porque nos falta o abraço? Porque o toque é caloroso, o toque é protector, o toque transmite tudo o que tem que dizer, o toque diz tudo que tem que transmitir.

A destruição pandémica do toque é a destruição do afecto. Não há um novo normal. O “novo normal”, dizem os anormais. Anseio o normal porque não há um novo normal. Somos obrigados a viver o anormal à espera do normal que vai acontecer. Pode demorar mas vai voltar. Desenganem-se os arautos do novo normal. Estes novos profetas que não sabem do que falam. Não sentem, não sabem sentir. Expressam sentimentos nas redes sociais. São despersonalizados. Preferem relações à distância, mesmo que fisicamente juntos. O telemóvel é o objecto de transição. Falam por sms e tweets. Não trocam afectos. São assexuados. Felizes? Não, tristes nas suas pobres felicidades. É uma ambivalência destruidora. Por isso chove e são lágrimas, Senhor!

Se tivesse que associar uma música à Covid-19 talvez associasse o Concerto de Piano nº 1 de Shostakovich. A ambivalência do piano com o trompete é a ambivalência de sentimentos, que tanto convergem como pouco depois se afastam. É a vontade de tocar com a necessidade de o não fazer. A leveza e doçura melódica penetra no ouvido como o suave toque que falta à pele. A alternância com os elementos dramáticos que mimetizar o sentimento humano no duro período pandémico, contudo com uma constante alegria de esperança de que tudo vai ficar bem.

 

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