O verão, os policiais e a enciclopédia do Tordo
PL
Era verão e ia entrar de férias. Chegava a altura dos policiais, género que habitualmente reservo para este período. Nenhum motivo particular, por hábito quiçá. Uma ida à livraria tinha-me desgraçado as finanças não fora o recatado confinamento que me manteve ausente do delicioso aroma a papel fresco por dois pares de meses. Compensado da ressaca por vários volumes no saco, não faltaram os costumeiros policiais da época. O ladrão de tatuagens de Alison Belsham e o enciclopédico A noite em que o verão acabou do João Tordo.
Começando pela pequena história de Belsham, sinopticamente interessante e volumetricamente pouco ameaçador, pecou por alguns percalços de tradução, particularmente nos discursos diretos, onde não revejo o vulgo cidadão com o linguajar daquela forma. A história entusiasma, surpreende no inicio, mas deixa-se ultrapassar pela leitura atenta e pelo raciocínio treinado do assíduo consumidor deste género literário que, sem dificuldade acrescida, tirará as conclusões acertadas antes do desenlace policial. Uma boa entrada, uma vichyssoise, antevendo um bom prato principal.
Ignorante quanto a João Tordo apesar de na minha biblioteca já existir Ensina-me a voar sobre os telhados, fui protelando a leitura por motivos variados embora nunca sendo o livro ou o autor o principal motivo, mas o estado de espírito, ou qualquer coisa que isso signifique, que é o meu principal motor de busca.
As férias apelavam ao enciclopédico policial. Da mesma forma que os homens não se medem aos palmos, também os livros não se classificam à página mas a extensão da escrita ou traduz uma elevada qualidade do texto ou, a partir de páginas tantas, perde ritmo e interesse e ganha palha e lastro que de pouco servem para satisfação do leitor.
N’ A noite em que o verão acaboua alternância temporal aumenta a coesão narrativa dando a informação à medida que vai sendo necessária. Várias linhas de pensamento vão-se estruturando, percebendo-se que todas elas poderão levar a lado nenhum. A alternância narrativa, muito bem construída, permite envolver duas histórias concorrentes. A escolha da narrativa principal é-nos condicionada pelos acontecimentos mais macabros mas estruturalmente poderemos considerar igualmente importantes as narrativas secundarias, considerando por um lado a história dos Walsh e por outro a de Taborda. Envolvidos por estes personagens são abordados diferentes temas relacionados com a complexidade das relações humanas. Que passam da vontade de se tornar escritor à incapacidade de continuar a produção literária. Uma forma de síndrome de Bartleby. Da adolescência à idade adulta. Da descoberta da sexualidade aos comportamentos de risco. Da relação da investigação criminal e do ministério publico com a necessidade política da obtenção de resultados. A caracterização das personagens é soberba. Quero acreditar que intencional. Do professor List ao professor Hayes, de Walsh a Pinkus, de Laura a Pedro Taborda. Deixo ao leitor a tarefa da avaliação. Apreciei particularmente a relação de Laura e Pedro. Um Pedro apaixonado a transbordar de tensão sexual e uma Laura que não permite o além da amizade. Um Taborda que varia da paixão por Laura passando pela relação ambivalente com a literatura e acabando na relação amorfa e desinteressante com a sua quotidiana existência. A não perder este enciclopédico Tordo.