Enquanto o chá arrefece
Sozinho, sentado na poltrona da sala que agora se habitua a uma regular companhia, mantenho distante o vazio olhar por detrás da fina pelicula que a lágrima deixou.
Vagueia o pensamento e as histórias vão passando, uma a uma, como as 55 cidades que Marco Polo descreve a Kublai Khan. O relato do visionário viajante ao melancólico imperador nada tem de real, mas permite uma expansão de pensamento e a absorção dessa própria irrealidade como se da mais pura verdade se tratasse. A impossibilidade da constatação factual transforma a crença numa verdade imaginada, contudo nada tem de real. Assim se desenrola a acção de “As cidades invisíveis” de Italo Calvino.
A questão põe-se quando o contrário também é verdade. Por muito inverosímil que seja a história, ela é real. Precisamos de escutar o tempo; interpretar quais os sinais que trouxe e o que ainda terá para dizer. O futuro só será uma incógnita se não atentarmos ao passado. Chamo a atenção muitas vezes à importância que temos que dar ao histórico, não só não o pondo de lado, mas apreciá-lo na sua forma evolutiva. Quais os desenvolvimentos que teve e onde poderá vir a desaguar. E não esquecer isto é fundamental para a interpretação das ocorrências futuras.
Por casualidade entrei numa sala tendo imediatamente desviado o olhar para uma reprodução do “Jardim das delícias terrenas” do Hieronymus Bosch que é um quadro que eu gosto muito pela sua visualidade e representação. Se aqui falamos dos prazeres carnais e da loucura, viajando do paraíso ao inferno, nem sempre a vida se desenrola desta maneira e a mais insana atitude pode estar alicerçada no mais puro sentimento. É difícil de perceber, mas tem que ser entendido. Deixemos esta representação e passemos ao paralelismo gráfico. O conjunto abundante de elementos dispersa a interpretação do quadro para uma alegoria simbólica em que a representação de cada elemento se perde no todo, mostrando a ideia e não o pormenor.
Olhemos para Caravaggio e para a minha interpretação de muitos dos seus quadros. Vemos sempre um importante jogo de luz. Há descrições de que o pintor a primeira coisa que fazia ao preparar a cenário onde ia pintar era tapar todas as janelas deixando apenas passar a luz para as zonas do quadro onde as queria iluminadas. Aí pintava o que queria mostrar mantendo o resto numa tonalidade escura fazendo sobressair ainda mais a luminosidade do motivo. Chamar a atenção ao pormenor é também muito importante. Mas mostrar só o pormenor, nalgumas circunstâncias impede uma visão global. Mas se partirmos do ponto que nos é mostrado e expandirmos o olhar nas restantes direções vamos perceber os pormenores da subexposição. Eles estão lá, só não são captados na primeira apreciação. E tudo isto faz de Caravaggio um dos meus pintores preferidos.
O que têm em comum Calvino, Bosch e Caravaggio? Exatamente aquilo que não se vê no primeiro olhar, no primeiro comentário, no primeiro julgamento. Deixemos o tempo mostrar.
E o meu Bouddha Bleu leve, suave, com um toque de doçura e uma tonalidade azulada da folha foi arrefecendo ao ponto de ser apreciado em toda a sua plenitude.