A máquina de fazer...
Há coisas que se adquirem no berço, outras ao longo a vida e outras nunca se chegam a adquirir. Talento nasce com as pessoas. Ou se tem ou nunca se terá. Podemos desenvolvê-lo, mas ele tem que lá estar.
É o que acontece com os escritores. Uns são naturalmente dotados, lemos com prazer, percebemos que vale a pena. Desenvolvem as suas capacidades inatas. Outros!...
Depois fazem Cursos de Escrita Criativa. Pode ser que dê. Ou seja, em vez de se aprender a escrever em português, aprende-se criatividade. Vamos agora “à escola” aprender a mobilar o texto, vamos reaprender todas aquelas figuras de estilo que aprendemos no secundário e que esquecemos fruto da sua desnecessária utilização. Paráfrases, hipérboles, metáforas, eufemismos, metonímias e por aí fora.
Saramago provavelmente nunca fez um curso de escrita criativa. Tinha uma ideia e transmitia-a conforme sabia ser a melhor forma. Confesso que nunca fui fã da sua forma de escrever, para conseguir ler com satisfação tinha que me abstrair completamente da forma e concentrar-me apenas no conteúdo. Uma amiga professora de Português disse-me uma vez que a melhor forma de ler Saramago era em voz alta, uma vez que ele privilegiava o discurso oral em relação à arte de escrever. Fiquei sem fôlego ao tentar ler uma frase apenas com mínimas pausas nas vírgulas. Continuei a concentrar-me na ideia esquecendo a escrita. Lá fui lendo uma meia dúzia deles.
Por outro lado há aqueles livros muito bem mobilados, com uma história engraçada, mas não passam disso. O autor contou um conto mas não acrescentou um ponto. Lê-se nas férias, na praia entre dois mergulhos, entremeia-se com conversa de circunstância, fala-se das novas aquisições futebolísticas, lê-se mais umas páginas e comentam-se os atributos da boazona do guarda-sol ao lado. Pelo meio mais um ou outro mergulho que o sol vai apertando e procura-se a barraca dos gelados.
Numa entrevista a José Rodrigues dos Santos fiquei com a ideia que tinha uma máquina de fazer livros. Uma máquina de sucesso. Vende muito. Lembrei-me logo de Valter Hugo Mãe e da Máquina de fazer espanhóis. Só pela analogia do nome. Na minha terra era costume dizer-se: “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”. Não generalizemos quanto aos espanhóis. Quanto à máquina...
Mas o verdadeiro desastre vêm com as chamadas “figuras públicas” (sabe-se lá o que isso quer dizer). Escrevem livros. Desculpem, pagam para que lhes escrevam livros. E poem a fotografia na capa, vendem que se fartam. Muitas nem sabem falar, quanto mais escrever. Bem, os escritores fantasma também precisam de ganhar a vida, é certo. E assim lá vão tendo umas oportunidades. Mas poupem-nos a este sufoco.
Se o talento é inato, a cultura é adquirida. Comemos o que nos dão, mas por favor deem-nos coisas boas. É que ao nos habituarmos ao que é bom, progressivamente vamos rejeitando o resto e de forma natural. Falaremos certamente de cultura um destes dias. Hoje o texto vai longo e não têm que me aturar.