A imprudência poética
Li, há alguns meses, na revista Ler, uma entrevista com Marcelo Mirisola. Um escritor brasileiro, polémico, algo escatológico, adepto da autoficção, um género literário ligado a uma autobiografia romanceada. O narrador, a personagem e o autor ocupam o mesmo espaço ficcional, não se tratando duma pura autobiografia mas de passagens, ideias ou situações que de alguma forma traduzem vivências realísticas do autor. O animal moribundo é um bom exemplo deste género literário muito presente em Roth e que me levou a parar, por algum tempo, a sua leitura. Em Roth encontramos um constante medo de envelhecer associado à incessante procura da companhia jovem e de jogos sexuais muitas vezes inverosímeis, que traduzem a obsessiva necessidade de mostrar a juventude enraizada no envelhecimento. Javier Marías nalguns romances também enveredou por este género, mas de Marías falaremos a seu tempo.
Um ponto interessante da entrevista é quando Mirisola refere que a maioria dos autores brasileiros contemporâneos vieram da universidade, considerando o meio universitário um meio castrador e demasiado contaminador da literatura. A obediência a regras rígidas e a pressão do “politicamente correcto” travam o normal fluir do pensamento e da escrita. Um exemplo disso na literatura portuguesa é o romance de Isabel Rio Novo, Rio do esquecimento. Doutorada em literatura comparada, é docente de Escrita Criativa. Uma história fantástica, um desenvolvimento interessante, um ritmo notável de leitura mas, em minha opinião, um texto demasiado estudado, matematicamente elaborado, onde cada palavra só cabe ali e a sua ausência faz-se notar. Gostei de o ler mas senti este amargo de boca.
E este tema é retomado por Francisco José Viegas na Carta do Editor da Ler quando, a propósito do Acordo Ortográfico, diz e passo a citar “Comparando o léxico de Mau tempo no canal, de 1944, com o romance de um autor contemporâneo, percebe-se que desapareceu cerca de 20% do vocabulário. A língua portuguesa está confinada ao seu ersatz, uma espécie de substituto ligeiro, uma língua de anúncios de aeroporto, de fala de supermercado.” E mais à frente acrescenta, “As novilínguas tecnocráticas que os analfabetos popularizam são também um elemento a ter em conta para a perda de identidade da língua.” Não poderia estar mais de acordo.
Homens imprudentemente poéticos é a antítese deste cenário e Valter Hugo Mãe o meu “convidado” do próximo post.