Uma mente inquieta
PL
A menina dos olhos doces voltou a sorrir e eu vi um dos sorrisos mais bonitos do mundo. A playlist tocava um despretensioso jazz vocal misturado com uns blues e umas referências mais “casual”, o fim de tarde assim pedia. Um whisky on the rocks talvez caísse bem.
Your voice is still calling me from somewhere back in time ouvia-se na voz de Inger Marie Gundersen que me levou a Cesário e a
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
Mas se essa carta alguma vez existiu o destinatário não fui eu e a playlist continuou com
I started a joke
Which started the whole world crying
But I didn't see
That the joke was on me, oh no
I started to cry
Which started the whole world laughing
Oh, if I'd only seen
That the joke was on me
Vi umas fotografias que tinha tirado durante a manhã, logo após o sol nascer, no frenético, mas tranquilo cenário do regresso, sempre esperado e temido, da faina marítima, entre peixe fresco, gaivotas desesperadamente ansiosas pelos seus quinhões e as tricanas que aguardam o seu sustento antes da debanda para a modernizada lota que substituiu o antigo e tradicional mercado do peixe.
Vale a pena ler O Poveiro, onde Santos Graça conta com pormenor e mestria a singularidade do pescador local. Mas, num registo completamente diferente, o pensamento voa para A Sibila da Agustina. Não pelos oráculos dos deuses, as adivinhações, mas pela menina dos olhos bonitos.
Assolam-me a mente e inquietam-me múltiplos e dispares sentimentos, sensações e pensamentos. A inquietude é constante a insatisfação permanente. A playlist parece querer acompanhar este padrão e introduz algumas coisas em português. Dou por mim a ouvir
Para de chorar
E dizer que nunca mais vais ser feliz
Não há ninguém a conspirar
Para fazer destinos
Negros de raiz
Mas como que por magia ou intervenção das sibilas o salto deu-se do Rui Veloso para Jorge Palma e imaginei-me, tal como na música,
Não sei se era maior o desejo ou o espanto
Só sei que por instantes deixei de pensar
Mas uma chama invisível não me incendiou o peito. Apenas a nostalgia e a necessidade de avançar. Peguei no livro que comecei ontem, A rota da porcelana de Edmund de Waal. Li as primeiras páginas, certamente levar-me-á a destinos longínquos, por rotas menos turbulentas que os meus pensamentos. Porque é que a minha playlist me traz O erro mais bonito? Se eu pudesse regressar aquele dia. E pudesse voltar a dizer como a Ana Moura
Tens os olhos de Deus
E os teus lábios nos meus
São duas pétalas vivas
Ouvi até ao fim, com o livro suspenso no colo e os olhos fechados. Voltei ao texto e à rota das porcelanas, aos ateliers de fino pó branco, moldável e macio onde delicadas peças vão nascendo embelezando estantes, vitrines, montras, escritórios, quartos, salas, casas, palácios e bordeis.
É verdade que os sonhos se tornam realidade se pensarmos neles com muita força?