Vontade
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Por vezes sentimo-nos na obrigação de continuar alguma coisa que começamos, mesmo que a vontade ou a inspiração nos digam o contrário. Não é este o caso do meu blogue e muito menos será o de Nuno Camarneiro quando escreveu Se eu fosse chão. Depois de ler No meu peito não cabem pássaros e com Debaixo de algum céu em lista de espera, tinha uma expectativa diferente. Um argumento que me pareceu interessante levou-me a dar-lhe a primazia, não mantendo a ordem cronológica. Soube-me a pouco e mal. Uma pobreza narrativa numa história assente em episódios isolados, mais parece um livro de contos que um romance. Aceito o desacordo dos leitores (o autor não creio que se preocupe em ler o meu blogue ), apenas dou a minha opinião. Raramente transcrevi alguma passagem dos livros que falo. São para ser lidas em continuo e não deslocadas, e fora do contexto podem ter interpretações completamente diferentes daquela que foi o objectivo do autor. Não sou muito adepto da multiplicidade interpretativa duma obra de arte. É uma esquizofrenia artística. Olhamos e vemos coisas diferentes. Confrontamos o autor e a ele nunca lhe passou pela cabeça a quantidade de coisas que inferimos da sua obra. Vem-me à cabeça o sapato de tachos e o candeeiro de tampões da Joana Vasconcelos. É arte... enfim! Mas hoje pareceu-me que uma passagem de Camarneiro traduz aquilo que quero dizer. “A literatura é a mais horrenda das artes, porque é feita da mesma matéria com que falamos e nos enganamos a nós e aos outros.” Contudo parto com o mesmo entusiasmo para o Prémio Leya de 2012. Vamos ver quando o tempo me permite a sua leitura.
Baseado neste conjunto de microficções (expressão que li a propósito noutro blogue) aconselho a leitura deste livro ao som de Quadros de uma exposição de Modest Mussorgsky. São músicas compostas tendo por base dez quadros de Viktor Hartmann expostos numa galeria em São Petersburgo. Peças soltas, unidas pela mesma melodia, tal como as histórias deste livro ligadas pela sua base comum, o hotel.
PL
Prefiro oferecer um livro a ter que o emprestar. Tenho-lhes um cuidado religioso. Sei que deveria ser um objecto de partilha, mas para mim é um objecto de arte. Não vejo por aí os quadros andarem de casa em casa. Agora esta semana o meu Vieira da Silva vai para tua casa e o teu Noronha vem para minha. Para a semana emprestamos ao Manuel e na outra semana à Marta. O Joaquim vai-me emprestar um que tem da Paula Rego e nessa altura empresto-te o da Maluda.
Então porque o fazemos com os livros? O Joaquim trata muito bem o quadro da Paula Rego, mas dobra as lombadas todas dos livros. Além disso dobra o canto da página para marcar onde está na leitura e, nalguns livros dele, até tem anotações. A última que vi foi do telefone da Catarina. Não sei quem é a Catarina, mas pelo menos tenho o telefone dela.
Se os livros falassem com os seus leitores talvez lhes dissessem muitas coisas. “Não dobres a folha”, “Cuidado com essa lombada”, “Bolas! Outra vez o café a chegar-me às páginas.”
Mas também há quem os cuide da forma que merecem. Algumas primeiras edições em caixas de cartão ou de madeira propositadamente feitas a preceito. Os livros certamente gostam de nós. Pelo menos de alguns de nós. Imagino uma conversa noturna entre dois livros em opostas mesinhas de cabeceira.
- Olá! Como foi o teu dia hoje?
- Foi bom, obrigado. A Rita levou-me na carteira ao centro comercial. Consegui ver três lojas de roupa e duas de carteiras. Estive quase a ver uma loja de sapatos mas já não foi possível. Entretanto saí uns quinze minutos da carteira e a Rita folheou-me com aquele cuidado habitual dela. Limpou a mesa com um lenço de papel antes de me pousar e teve todo o cuidado em manter o café longe de mim. E o teu?
- O meu foi um bocado turbulento. Depois de ter sido atirado para a mochila do Pedro, fui a correr até ao autocarro. Dei umas quantas cambalhotas. Embrulhei-me nos calções de banho. Na praia ainda estive algum tempo ao sol e depois durante quase uma hora servi de almofada. Quando pensei que o Pedro ia pegar em mim para me ler um bocadinho, fui transformado em prato de um sumo de laranja e ainda levei com umas gotas. Para azar meu o sumo era bastante amargo. Finalmente abriu-me e esteve a ler uns dez minutos. O tempo de leitura foi pequeno, mas foi o suficiente para eu ficar com algumas areias que me têm magoado as páginas. Tenho uma areia aqui entre a página 122 e a 123 que me está a incomodar bastante. Não sei se vou conseguir descansar assim. Além disso fico sempre sobressaltado porque o copo de água está frequentemente à minha beira. Detesto líquidos e areias. Mas ando sempre embrulhado nelas. Não imaginas a minha viagem de regresso. Tão atribulada como a de ida, mas desta vez na companhia dos calções molhados e cheios de areia. Detesto a praia!
- A Rita ontem levou-me à praia. Mas não foi nada disso. Tratou-me com muito cuidado. Protegeu-me das areias e manteve sempre a garrafa de água longe de mim. Tenho tanta pena que ela acabe de me ler. Sinto-me muito feliz nas suas mãos.
Imagino um autor, o seu editor, o designer gráfico a verem alguns dos seus livros em circunstâncias particulares. Eu teria um ataque cardíaco se um livro meu fosse transformado em fascículos por capítulo.
Há coisas que se adquirem no berço, outras ao longo a vida e outras nunca se chegam a adquirir. Talento nasce com as pessoas. Ou se tem ou nunca se terá. Podemos desenvolvê-lo, mas ele tem que lá estar.
É o que acontece com os escritores. Uns são naturalmente dotados, lemos com prazer, percebemos que vale a pena. Desenvolvem as suas capacidades inatas. Outros!...
Depois fazem Cursos de Escrita Criativa. Pode ser que dê. Ou seja, em vez de se aprender a escrever em português, aprende-se criatividade. Vamos agora “à escola” aprender a mobilar o texto, vamos reaprender todas aquelas figuras de estilo que aprendemos no secundário e que esquecemos fruto da sua desnecessária utilização. Paráfrases, hipérboles, metáforas, eufemismos, metonímias e por aí fora.
Saramago provavelmente nunca fez um curso de escrita criativa. Tinha uma ideia e transmitia-a conforme sabia ser a melhor forma. Confesso que nunca fui fã da sua forma de escrever, para conseguir ler com satisfação tinha que me abstrair completamente da forma e concentrar-me apenas no conteúdo. Uma amiga professora de Português disse-me uma vez que a melhor forma de ler Saramago era em voz alta, uma vez que ele privilegiava o discurso oral em relação à arte de escrever. Fiquei sem fôlego ao tentar ler uma frase apenas com mínimas pausas nas vírgulas. Continuei a concentrar-me na ideia esquecendo a escrita. Lá fui lendo uma meia dúzia deles.
Por outro lado há aqueles livros muito bem mobilados, com uma história engraçada, mas não passam disso. O autor contou um conto mas não acrescentou um ponto. Lê-se nas férias, na praia entre dois mergulhos, entremeia-se com conversa de circunstância, fala-se das novas aquisições futebolísticas, lê-se mais umas páginas e comentam-se os atributos da boazona do guarda-sol ao lado. Pelo meio mais um ou outro mergulho que o sol vai apertando e procura-se a barraca dos gelados.
Numa entrevista a José Rodrigues dos Santos fiquei com a ideia que tinha uma máquina de fazer livros. Uma máquina de sucesso. Vende muito. Lembrei-me logo de Valter Hugo Mãe e da Máquina de fazer espanhóis. Só pela analogia do nome. Na minha terra era costume dizer-se: “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”. Não generalizemos quanto aos espanhóis. Quanto à máquina...
Mas o verdadeiro desastre vêm com as chamadas “figuras públicas” (sabe-se lá o que isso quer dizer). Escrevem livros. Desculpem, pagam para que lhes escrevam livros. E poem a fotografia na capa, vendem que se fartam. Muitas nem sabem falar, quanto mais escrever. Bem, os escritores fantasma também precisam de ganhar a vida, é certo. E assim lá vão tendo umas oportunidades. Mas poupem-nos a este sufoco.
Se o talento é inato, a cultura é adquirida. Comemos o que nos dão, mas por favor deem-nos coisas boas. É que ao nos habituarmos ao que é bom, progressivamente vamos rejeitando o resto e de forma natural. Falaremos certamente de cultura um destes dias. Hoje o texto vai longo e não têm que me aturar.
Se não me engano, foi em 2006 que li Mentira. Andava na senda dos autores espanhóis. Talvez um bocadinho desiludido com o que por cá se ia escrevendo e querendo fazer uma pausa nos autores anglo-saxónicos, virei-me para a outra metade da península. Completamente desconhecedor fui vendo o que havia pelas livrarias. Lia os títulos, lia contracapas e badanas. Embarretei-me algumas vezes. E chegou-me Mentira de Enrique de Hériz às mãos. Um livro contado a duas vozes. Contralto e soprano. Uma voz mais velha, mais obscura e mais grave. Uma voz mais nova, mais límpida, mais aguda, talvez também mais aflita. Uma mãe, uma filha. Uma vida de enganos, de erros, de mentiras. A alternância dos capítulos é sublime, a narrativa espantosa, a história belíssima. O ritmo acelera e desacelera nas alturas próprias, as situações vão-se alternando em sucessivas sequências estruturadas na história de três gerações de uma família catalã de Barcelona. As relações humanas e a arte de serem vividas no real e na mentira, dissimuladas pelas verdades fingidas, fazendo com que tudo pareça normal e verdadeiro. O presente vai-se misturando com o passado e a necessidade da procura da verdade vai desvendando a mentira. Da mentira inicial vai chegar-se a verdade final. Uma situação equivoca inicia o repensar de toda uma existência baseada na irrealidade duma relação familiar supostamente impoluta e verdadeira, novelo que se vai desenrolando em direção às verdades ocultas que paulatinamente se vão desvendando.
Como sempre não conto a história do livro. Não dou pistas ao leitor. Não lhe tiro o prazer de ir desvendando a narrativa contada nas duas vozes, de contralto e soprano, embaladas num coro de vozes banais, que juntas embelezam e dão corpo a este concerto de dois instrumentos e orquestra.
Foi um dos melhores livros que li ao longo destes anos, estando no meu Top 5. Aconselho, recomendo. Leiam e releiam. Vale mesmo a pena perder-se neste livro.
A antítese mostrada pelas duas narrativas, que se vai esbatendo ao longo da procura da verdade, conjuga-se duma forma perfeita no contraponto do violino e da orquestra de um dos mais bonitos concertos de violino que tenho o gosto de conhecer. Uma obra que ouço com regularidade e que mantenho sempre o mesmo prazer ao ouvi-la. O Concerto para violino e orquestra em ré maior op35 de Tchaikovsky. Outra obra prima a não perder.
Se sonhares comigo hoje
Deixas-me feliz,
Porque desesperado
Procuro a tua atenção.
Foges-me entre os dedos
Sempre que tento prender-te,
Não com as mãos
Mas com o coração.
Se sonhares comigo hoje
Deixas-me feliz,
Porque cansado
Sinto-te partir.
Não vás, não fujas para longe
Nossos caminhos há muito se cruzaram,
Nossos corações por vezes sozinhos
Sonham sempre acompanhados.
Mil anos passaram, mil anos virão
Mil anos são poucos para o meu coração.
Querer-te é uma dor que não vai passar,
Ter-te é o amor que veio para ficar.
Dizê-lo não basta,
Mostrá-lo, talvez...
Mas deixa-me ao menos
Tentá-lo uma vez.
Dar-te carinho, fazer-te feliz
Escrever-te um poema, levar-te a Paris
Se sonhares comigo hoje
Deixas-me feliz
PL
Foi com Somos todos um bocado ciganos que entrei no mundo literário de Manuel Jorge Marmelo. E não parei de o percorrer, sendo sempre com gosto que pego num dos seus livros. Um escritor cheio de recursos narrativos, bem espelhados ao longo do seu percurso literário. Umas vezes mais sério, outras bem jocoso e pelo meio passando por narrativas onde algum delírio de sentido leva o leitor a um estado mais onírico, tal como alguns personagens do seu texto.
Através de situações insólitas, Marmelo vai passando, em Somos todos um bocado ciganos, por temas muito complexos como a exclusão social e a marginalidade. Com um circo decadente como pano de fundo, podemos tirar um conjunto de interpretações, desde a mais óbvia alusão à actividade circense clássica actual no nosso país, nómada e precária, onde as dificuldades subjacentes se vão contrapondo ao Grande e Maravilhoso Espectáculo, até à percepção de que todos os valores sociais se conjugam, de uma forma mais ou menos periclitante, dentro daquela pequena comunidade, com uma mistura cultural, racial e religiosa, onde podemos encontrar uma micro-representação do país.
A incerteza é vivida duma forma muito intensa ao longo da narrativa, onde se misturam cenários caóticos com situações divertidas e onde o humor e a ironia caminham de mãos dadas.
Um livro que vale a pena, de um autor que tem crescido e que, na minha opinião, já ganhou um lugar importante na literatura portuguesa contemporânea. Por isso mesmo mais cedo ou mais tarde voltaremos a ele.
Esta conjugação de culturas e estilos, encontramo-la para além deste circo decrépito, numa fusão muitas vezes única e deliciosa. Foi o que aconteceu quando Michel Camilo, pianista e compositor, se juntou a Tomatito, um guitarrista de flamengo espanhol. Ao longo destes anos surgiram 3 albuns a reter, Spain (em 2000), Spain Again (em 2006) e Spain Forever (em 2016). Um dueto improvável a não perder.
Ainda bem que há uma tendência de rejuvenescimento de romances com alguns anos. Não têm sido poucos os livros que fui lendo ao longo de anos e que vejo agora espelhados nas montras de algumas livrarias como se de grandes novidades se tratasse. Alguns mantendo os traços originais, outros botoxizados e outros ainda com capas completamente diferentes, deixando-nos por vezes a incerteza de já os termos lido. Mas ainda bem que assim é. Caso contrário estariam perdidos para as novas gerações. Da mesma forma que alguns livros que fui lendo foram remasterizados de edições mais antigas que certamente não me chamariam a atenção.
O Deus das pequenas coisas é um desses livros. Li-o quando foi lançado em Portugal já não me lembro bem o ano. Duas coisas me chamaram a atenção, o título e a capa. Já atrás falei sobre a escolha dos livros e não tenho a menor dúvida que se a capa ou o título não me chamarem a atenção, o livro passa-me ao lado. Excepção aqueles que me são recomendados. E ainda bem que este título me chamou a atenção, que eu peguei no livro, que li a contracapa... acabo sempre por ler os elogios transcritos, ignorando o facto de só lá estarem por serem elogios. Às vezes penso se o que lá vier escrito não for abonatório, se não despertará maior curiosidade no leitor. Por vezes isso acontece comigo. Uma critica má deixa-me expectante e com vontade de ler.
Mas voltemos a O Deus das pequenas coisas, onde o cenário é a Índia nos meados do século XX , com as importações políticas, sociais e culturais europeias misturadas nos usos e costumes mais tradicionais duma Índia ainda fechada pelos seus padrões mais tradicionais, fruto duma mescla de influências histórico-sociais. E conta-se a história de três gerações duma família, cheia de recortes originais, onde os mais pequenos pormenores são descritos com uma beleza poética incomensurável. É mais uma história de amores proibidos, é mais uma história com recortes sociais marcados pelas diferenças e incompreensões. É mais uma história que deve ser sentida à medida que se lê. Apesar de descrever os padrões sócio-culturais dos anos 60/70, é uma história que em muitos lugares é actual. E é talvez esta actualidade que faz ressurgir o romance de Arundhati Roy.
Talvez este intrincado jogo de paixões proibidas, misturado com a miscelânea cultural indiana se reveja nalguns aspectos mais rebuscados do barroco, atenuados pelo som mais grave do violoncelo, pelo que eu poria em fundo as Cello Sonatas de Bach, numa interpretação sublime de Mischa Maisky.
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